quarta-feira, 30 de setembro de 2015

“Crise migratória” e seus (ir)responsáveis

A espiral decadente na tragédia humana e global que a mídia convencional escolheu denominar “crise migratória” é composta de muitos matizes e de responsáveis deliberadamente postos à sombra. Não é nova a incapacidade ou indisposição crônica dos meios de comunicação para a análise dos grandes desafios enfrentados pela humanidade, nem sua parcela de responsabilidade no simplismo e na xenofobia que sustentam as “políticas migratórias” daqueles que tentam fechar suas portas a milhões de refugiados.
Por Moara Crivelente*, do blog O mundo & resistência, especial para os Jornalistas Livres.
Uma campanha pede a órgãos midiáticos tradicionais como a britânica BBC honestidade na política do denominar. Suas notícias por vezes recheadas do termo “crise migratória” são falaciosas, simplistas e insensíveis às causas que levam famílias inteiras a fugir de suas casas, lançarem-se à sorte e ao risco, para tentarem se salvar. São refugiados buscando escapatória de “crises” frequentemente abastecidas por esses mesmos “paraísos” para onde se dirigem.
Mas essa tendência tem mudado ligeiramente. As imagens são demasiado chocantes e a narrativa tem sido cada vez mais dramática, embora ainda contaminada pela abordagem a uma “ameaça” ou um “problema” migratório, traga ele o histórico que trouxer. Corpos negros e árabes jogados ao mar ou nas praias têm chegado aos noticiários no Brasil, onde começamos a entender — ainda insuficientemente — nosso próprio desafio para lidar com a migração com base no respeito aos direitos humanos mais básicos — inclusive o direito de migrar e buscar refúgio.
Exemplo foi a imagem do menino sírio cujo pequeno corpo foi fotografado e avistado pelo mundo em uma praia turca. Para humanizá-lo, descobriu-se seu nome e sua trajetória: Aylan Kurdi tinha três anos de idade e foi carregado pela família, até que sua mãe, Rehan, e seu irmão, Ghalib, de cinco anos, também se afogassem. A história é contada ao “New York Times” pelo pai, Abdullah Kurdi, agora solitário na fatídica jornada de volta, para enterrar sua família, que deixara Damasco e, antes disso, Kobani, uma resistente cidade curda brutalmente atacada pelo autodenominado “Estado Islâmico”.
As imagens de corpos nas praias ou de moribundos resgatados ao mar, principalmente vindos da África e do Oriente Médio, têm um contexto e dizem muito sobre a atual conjuntura geopolítica mundial. Conflitos perpetuados somam-se às crises sistêmicas do capitalismo para impor a determinadas populações riscos tamanhos que a solução se lhes apresenta como o deslocamento ou o refúgio.
Neste périplo de agonias, mais de 2.300 pessoas já morreram em 2015 tentando cruzar o Mediterrâneo, principalmente da Eritréia, do Mali, da Síria e do Afeganistão. No ano passado, foram mais de 3.200 mortes na mesma travessia e 307 outras vidas perderam-se na fronteira do México com os Estados Unidos. Desde 2000, mais de 22 mil migrantes morreram tentando alcançar a Europa. Os dados são do mais recente relatório da Organização Internacional para a Migração, “Jornadas Fatais” (Fatal Journeys).
O professor espanhol de Ciências Políticas Sami Naïr conclui, num artigo para o diário “El País” desta quinta-feira (3): “Acreditou-se que se podia conter, para sempre, um problema estrutural de natureza demográfica e geoeconômica unicamente com medidas policiais; isso é o que hoje explode no rosto da União [Europeia!]”. Ele critica o esgotamento de uma política migratória elaborada pelo bloco a partir de 1985, desde que assinados os Acordos de Schengen, que construíram “uma autêntica barreira de ferro contra os de fora”.
A ilha italiana de Lampedusa ou o porto francês de Calais refletem esse drama. Na primeira, sobreviventes de algum conturbado resgate denunciam perseguições em alto mar e tratamento criminal, e algumas mulheres acusam oficiais italianos de grave abuso sexual. Para outros, o destino é a prisão, enquanto sua “situação” burocrática é avaliada ou enquanto corre o processo de deportação. Calais, um porto francês que faz conexão com o Reino Unido, é outro dos cenários em que graves abusos dos direitos humanos são frequentemente denunciados. Os casos são por vezes narrados pelos meios domésticos como uma iminente invasão que deve ser ali contida.
Além da estreiteza na formulação de políticas que se dediquem mais à “segurança humana” do que à segurança seletiva, paliativa e militarizada, há também uma persistente insuficiência na análise das causas e das responsabilidades pela mais recente “crise migratória”. Além dos impactos da crise internacional, os conflitos acumulam-se à medida em que os países que os gerem ou abastecem, fieis a suas políticas imperialistas ou neocolonialistas, gastam mais recursos na guerra do que na mitigação dos seus efeitos sobre as populações atingidas.
Desde a ofensiva de tratados de “livre-comércio” ou políticas de militarização no retrógrado “combate ao narcotráfico”, que derramam suas consequências pelas fronteiras entre México e Estados Unidos, até a manipulação de grupos armados da população descontente ou mercenários estrangeiros para a derrubada de governos, a geopolítica mundial está dominada por inúmeros conflitos e tensões sociais.
A Escola de Cultura de Paz da Universidade Autônoma de Barcelona estimou em pelo menos 36 conflitos armados ativos no final de 2014–13 na África, 12 na Ásia, seis no Oriente Médio, quatro na Europa e um na América Latina. Na Síria, o número de deslocados internos — que não chegam a cruzar a fronteira — é hoje de 11 milhões de pessoas. Os que atravessam a fronteira procuram botes infláveis, caminhões frigoríficos e outros meios inseguros e precários para sobreviver à jornada, por vezes também feita à pé.
O acúmulo de necessidades sobrecarrega os sistemas de apoio humanitário e a perpetuidade dos conflitos afoga as populações na violência. Enquanto isso, mantendo sua política de ingerência belicosa, os EUA gastam em média US$ 68 mil por hora para voos e ataques aéreos na Síria e no Iraque, mas a ONU recebeu apenas metade do recurso necessário para prestar assistência à população cujo país tem sido lapidado, diz Yacoub el Hillo, oficial das Nações Unidas na Síria. Já os recursos destinados aos grupos armados ou a mercenários e regimes aliados das grandes potências são inestimáveis.
A era do intervencionismo militar — direto ou indireto — politicamente motivado, mas trajado de benevolência superior pelos meios de comunicação, integra o cenário da grande tragédia humanitária vivida atualmente. O mesmo se passa com as políticas migratórias xenófobas, ainda assim insuficientes para lidar com os resultados de políticas externas imperialistas e neocolonialistas, de um sistema de iniquidades fadado à perpetuação e à repetição das grandes crises, ou das grandes tragédias, cada vez menos detidas pelas fronteiras.
Moara Crivelente é cientista política (doutoranda em Política Internacional e Resolução de Conflitos) e jornalista (mestre em Comunicação dos Conflitos Armados e Sociais), interessada nas questões de conflito e paz, militarização, resistências populares e participação política.

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